(foto: Ana Gilbert)
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A expressão ‘outros inapropriados‘ foi tomada por empréstimo à cineasta Trinh Minh-ha por Donna Haraway para se referir àqueles que são considerados como ‘outros‘, diferentes de um padrão reconhecido como tal, ou diferentes daquilo que é considerado como ‘mesmo‘.
No inglês, a expressão inappropriate/d others cria um jogo de palavras que, se por um lado, define aqueles considerados como inapropriados ou inadequados, por outro, permite que, justamente por não corresponderem ao padrão vigente disseminado em narrativas dominantes, possam escapar a uma apropriação objetificante validada por essas narrativas. Ser um ‘outro inapropriado‘ significa, para Trinh e Haraway, relacionar-se com a diferença fora do eixo dominação-submissão. Significa produzir imagens da diferença que não sejam meras reproduções, ou reflexos, do ‘mesmo‘, mas novos e múltiplos padrões que não remetem a, nem reafirmam, um único modelo. Os ‘outros inapropriados’, aos quais Haraway se refere em suas discussões, são aqueles que diferem do padrão de homem branco, civilizado, ocidental, compulsoriamente heterossexual e, poderíamos acrescentar, capaz e produtivo.
A mulher foi, historicamente, associada à natureza e, em decorrência, a uma corporeidade biológica descontrolada, enquanto o homem estaria mais vinculado à cultura, isto é, a todo produto da consciência e da ação humana, sendo o responsável por dominar e controlar a natureza, e, portanto, a mulher. No século XIX, a busca pela estabilidade e pela simplificação dos papéis no âmbito da família nuclear determinou para a mulher a função de responsável pela harmonia do lar, à custa de acalmar e controlar seus impulsos, principalmente, os de natureza sexual. Como resultado, sintomas físicos diversos passaram a ser a única forma de expressão da mulher, dando origem às manifestações nomeadas como histéricas, e validando a sua medicalização como forma de controle de sua natureza instável. De acordo com essa perspectiva, a mulher não seria capaz de falar por si mesma, tornando-se objeto do discurso do outro.
O conceito de gênero, marcador social de diferença assim como raça e classe, é construído de forma relacional e não é determinado pelo sexo, apesar de certamente depender dele. Ele foi desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual, que estabelece hierarquia e antagonismo entre homens e mulheres, a naturalização da reprodução para a mulher e também a sua medicalização, como forma de dominação e controle, principalmente da sexualidade feminina.
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Pessoas com algum tipo de deficiência, que de alguma forma se apresentam com corpos não-normativos, também já foram consideradas incapazes de falar por si mesmas, consistindo em mero objeto do discurso do outro, e como tal, necessitando da intermediação de alguém que falasse delas (e por elas). O movimento social que surgiu nos anos 1970, buscou uma nova forma de entendimento das pessoas com deficiência, fora do modelo médico, e novos modelos relacionais mais adequados a uma realidade, até então, pouco enfocada.
No processo de tornar visível a variação apresentada pelos corpos não-normativos (atípicos), a tendência foi a de se afastar da noção de deficiência como falha ou fracasso, passível de intervenção médica, para entendê-la como produto de uma construção social. Entretanto, a abstração dessa construção acabou por reforçar o corpo normal como universal e único modelo possível, tornando a deficiência invisível em sua materialidade. A tendência, hoje, é reconhecer as marcas somáticas da diferença presente nos corpos humanos sem, contudo, deixar de lado a base social/cultural do preconceito e da desigualdade. É a partir da materialidade da diferença que se pode construir um estar-no-mundo mais criativo que abarque a variabilidade dos corpos humanos.
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Haraway D. The promise of monsters: a regenerative politics for inappropriate/d others. In: Grossberg L, Nelson C, Treichler PA, eds. Cultural Studies. New York: Rutledge, 1992. p. 295-337.
Haraway D. Primate visions. Gender, race, and nature in the world of modern science. New York: Routledge; 1989.
Kehl MR. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. São Paulo: Boitempo, 2016.
Gilbert ACB. Narrativas sobre síndrome de Down no Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência Assim Vivemos. Interface (Botucatu). 2017; 21(60):111-21.