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Estranhamentos

9 de fevereiro de 20174 de junho de 2018 / Ana Gilbert / Deixe um comentário

Anão-e-garras

(foto: Ana Gilbert)

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Quando Itaro, personagem do livro homens imprudentemente poéticos de Valter Hugo Mãe, ascende do poço abraçado ao animal, monstruoso e terrível, que tivera por companhia na solitária meditação a que se submetera, durante sete sóis e sete luas, por determinação do monge imaterial, vinha certo de que haviam se tornado amigos. O que antes se insinuava como uma presença inimiga e aterradora, desconhecida em força e identidade, ainda que familiar em bafo, pelos, dentes e ferocidade, revelava-se, na subida, como companheiro submisso e cordial. Ao chegar, exausto e quase alegre por se terem salvado os dois, espanta-se ao constatar que trazia ninguém. Alguém diria que era o seu próprio medo, ao qual se tinha afeiçoado…

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Sigmund Freud, em artigo de 1919, discute os múltiplos aspectos do tema do ‘estranho’, e os diferentes significados a ele relacionados, por meio de uma análise do uso linguístico da palavra alemã heimlich. Em um primeiro sentido, segundo ele, o termo se refere àquilo que é doméstico, familiar, confortável, aconchegante, íntimo. Contudo, um segundo sentido aponta para o que é escondido e oculto, para aquilo que não deve ser mostrado, para o que é obscuro e secreto. Assim, percebe-se que, nesse segundo sentido, heimlich se aproxima de seu oposto, unheimlich, configurando-se como expressão ambivalente e que passa a compor a definição de ‘estranho’ à qual Freud se refere no início do texto: “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar.” (p. 277). Pode-se dizer, então, que a estranheza está ligada, não a uma propriedade de um determinado objeto, mas ao nosso olhar e à nossa relação com o dito objeto, relação essa que beira a esfera da ameaça ou do risco.

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Em seu livro, os anormais, Michel Foucault discute um tipo de poder que surge no século XVIII, a que ele chama de ‘poder de normalização’, que não mais se assenta sobre o princípio da exclusão, da rejeição, do banimento (como no caso dos leprosos, no fim da Idade Média), mas sobre o princípio da inclusão, por meio da qual esse poder, de caráter positivo, torna-se observador, formador de um saber, ligado a técnicas de intervenção e transformação sobre aquilo que é considerado como desvio. Foucault faz uma genealogia do que é considerado, no século XIX, como indivíduo anormal, e destaca o ‘monstro’ como um dos seus elementos constituintes. A ideia de ‘monstro’, ressalta o autor, refere-se a uma violação das leis, seja da sociedade, seja da natureza, e sua capacidade de provocar inquietação gera sentimentos de violência, de pena, de atenção médica, ou a necessidade de supressão.

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Identidades predatórias é o termo usado por Arjun Appadurai para se referir às identidades que se constituem e se fortalecem, forçosamente, pelo aniquilamento de outras categorias sociais, as quais são entendidas como ameaçadoras a determinado grupo, quase sempre majoritário, que se intitula nós. A separação nós/eles remete a uma questão básica em sociologia que abrange o estabelecimento de fronteiras bem definidas de um nós que se contrapõe ao que dele difere. Relacionadas a essa questão, as ideias de maioria e minoria são produtos mais recentes na história da humanidade, que surgem associadas às noções de nação, contagem, classificação e representação política das populações. As minorias, apesar de sua ‘fraqueza’ em termos políticos (ou até mesmo militares), curiosamente, despertam a ira e o medo da chamada maioria. Identidades majoritárias podem estar associadas a questões culturais e identidades nacionais, a questões religiosas ou a questões raciais. Ideias de ‘pureza’ e de ‘completude’ também cercam o par maioria/minoria, provocando ansiedade no grupo que se percebe como maioria, isto é, que se percebe como não constituindo um todo absoluto, e gerando com isso a necessidade de ‘purificação’. Segundo Appadurai, esta seria uma das causas da ira que a minoria desperta, pois esses ‘pequenos números’ representam aquilo que impede a maioria de se tornar totalidade. Esse tipo de minoria não se define apenas como uma minoria em termos de opinião, ou seja, uma minoria que se configura como tal por exercer o direito ao dissenso, o direito à liberdade de opinião e de discurso, mas uma minoria em termos sociais e culturais e, portanto, uma minoria permanente.

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O outro, isto é, aquele que difere do eu, e com o qual devemos estabelecer uma relação de diálogo, pode assumir facetas inquietantes e mesmo desorganizadoras, como se pode ver nos diferentes autores citados acima. Essas facetas dizem respeito ao olhar que lançamos sobre aquele que se configura como outro, e que elucida mais sobre nós mesmos do que sobre o sujeito, objeto desse olhar. O outro se revela tanto interno, ou seja, aquele que nos habita e que desconhecemos, quanto externo. Contudo, o elemento comum que perpassa essas várias facetas do outro é a dificuldade que temos de estabelecer uma relação de genuína abertura à alteridade. O outro demarca um território ao qual não temos total acesso, o que nos faz lançar mãos de rótulos, ou categorias, que sirvam de mediadores dessa relação, em certo sentido, ameaçadora. O outro é aquele com o qual nos identificamos, mas ao mesmo tempo, de quem devemos nos diferenciar para que não seja apenas nosso espelho. A diferenciação é o que torna possível a relação de diálogo; permite o reconhecimento de certos aspectos colocados no outro que, na verdade, nos pertencem, mas, principalmente, nos abrem ao desconhecido que é o outro e ao desconhecido que esse outro vê em nós, despertando-nos para experiências que participam da constituição do que somos.

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Hugo Mãe V. Homens imprudentemente poéticos. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.

Freud S. O ‘estranho’. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976. p. 271-318, v.XVII.

Amaral LA. Corpo desviante / olhar perplexo. Psicologia USP, São Paulo, 5(1/2), p.245-268, 1994.

Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. (Coleção Obras de Michel Foucault)

Appadurai A. Fear of small numbers. An essay on the geography of anger. Durham and London: Duke University Press, 2006.

Bernardi C. Amizade individuante, exotopia e hospitalidade: encontros e individuação. 2012. (Apresentação de Trabalho/Congresso).

Práticas de olhar

4 de novembro de 20165 de junho de 2018 / Ana Gilbert / Deixe um comentário

perspectiva

(foto: Ana Gilbert)

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A forma como olhamos o mundo é contingente, isto é, moldada pela cultura e pelo momento  histórico em que vivemos. Constantemente, lançamos mão de práticas de olhar (inclusive, quando desviamos o olhar) para dar sentido ao mundo que nos rodeia. Práticas de olhar não são objetivamente neutras, mas constituem práticas interpretativas críticas que se conectam a um determinado momento histórico-cultural que dita um modo de olhar. Tais práticas constituem também práticas sociais, uma vez que elas participam, junto com percepções dos outros sentidos, do estabelecimento e da negociação das relações entre as pessoas. Não se trata apenas do que vemos, mas de como vemos e de como percebemos aquilo que é veiculado em visualidades subjacentes.

Contudo, falar em experiências visuais não significa dizer que as imagens são, ou deveriam ser, separadas de outras experiências e representações, tais como a escrita e os discursos. Imagem e linguagem constituem formas de descrever, significar e entender o mundo. Em sua materialidade, o mundo não se apresenta a nós meramente refletido nas representações que são feitas dele: nós construímos múltiplas camadas de significados explícitos e implícitos (denotativos e conotativos, na acepção de Roland Barthes) que atribuímos ao mundo por meio das representações que fazemos das coisas (objetos, lugares ou entidades). Tais representações obedecem a regras e convenções que são ditadas por determinada cultura, não configurando, portanto, reflexos não-mediados da realidade. Em muitos casos, as regras são ‘esquecidas’ e aquilo que resulta de uma construção, passa a ser visto como ‘óbvio’ ou ‘natural’.

Formas de olhar o mundo estão presentes também na leitura de textos (verbais e não-verbais), ainda que haja diferenças entre a apreensão de imagens e palavras. As imagens evocam palavras, bem como as palavras suscitam imagens que vão ser lidas de acordo com as práticas de olhar vigentes. O processo de decifrar uma imagem envolve, além da própria imagem e dos significados dominantes a ela atribuídos, elementos, tais como, memórias pessoais, conhecimento e enquadramento cultural. Do mesmo modo, ao lermos um texto escrito, lançamos mão de experiências com textos anteriores para contextualizarmos o atual. Textos literários não se restringem às intenções do autor, mas são produzidos no ato da leitura, de acordo com perspectivas situacionadas dos leitores.

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“Entender é um modo de olhar. Porque entender, aliás, é uma atitude.” (Clarice Lispector, A maçã no escuro).

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–Barthes R. Image – music – text. London: Fontana Press; 1977.

Sturken M, Cartwright L. Practices of looking: an introduction to visual culture. New York/Oxford: Oxford University Press; 2009.

Reflexão e aprofundamento

Publicação de materiais que estimulem a reflexão e a discussão sobre temas diversos, utilizando a literatura como instrumento de sensibilização.

imagens do cabeçalho: Ana Gilbert

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