

“Narrativas de corporeidade: dança, deficiência e processos criativos“, no âmbito do Projeto Sinalidade UFRJ | Departamento de Letras-Libras
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“Narrativas de corporeidade: dança, deficiência e processos criativos“, no âmbito do Projeto Sinalidade UFRJ | Departamento de Letras-Libras
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LIVRO: Art and Activism in the Age of Systemic Crisis: Aesthetic Resilience
Em 2018, recebi um convite da pesquisadora Marijke de Valck, da Utrecht University, para participar de uma publicação acadêmica sobre arte, ativismo e estética de resiliência em tempos de crise sistêmica, com um texto sobre deficiência.
Assim nasceu o projeto fotográfico Geografias Corporais, realizado com a Pulsar Companhia de Dança e o grupo de pesquisa sobre movimento Te Encontro Lá no Cacilda.
O projeto, desafiador e fascinante, desenvolveu-se em dois caminhos complementares entre si: um ensaio fotográfico-literário, com textos inéditos de Paulo Kellerman, publicado (apenas parte do material) no periódico brasileiro Interface – Comunicação, Saúde e Educação; e um ensaio teórico-fotográfico, o capítulo 14 desta publicação: Embodied narratives: dance, corporeality, and creative processes.
O livro Art and Activism in the Age of Systemic Crisis: Aesthetic Resilience já está disponível para venda, nos formatos Kindle e hardcover aqui:
“This book will be of interest to scholars in contemporary art, history of art, film and literary studies, protest movements, and social movements.”
Sobre o capítulo:
“The focus of this chapter is to discuss an artistic experience with disability in the realm of dance. To do so, I made a photo essay with Pulsar, a Brazilian dance company, composed of dancers with normative and non-normative bodies, whose artistic proposal is to create a dialogue between spectators and different corporealities, and a research group on movement based on dance as an extension of Pulsar, named Te encontro lá no Cacilda, composed of participants with different disabilities. This chapter and its photo collages are based on the collaborative exhibition “Corporeal Geographies” which involves photography, literature and dance. Using the images as a material basis for the discussion, I explored some ideas concerning the embodied narratives performed by the dancers and captured by my camera, and the role of art in considering disability as part of human variability and as a form of resistance to understand disability within a normality frame. The embodied narratives point to creative processes that evoke an aesthetic resilience to politically reaffirm difference and multiplicity in contemporary artistic scenario.”
Academia e arte. Brasil e Portugal. Dança, fotografia e literatura. Diálogos em torno de múltiplas corporeidades.
Projeto com o grupo de pesquisa sobre movimento Te encontro lá no Cacilda / Pulsar Cia. de Dança | Teatro Cacilda Becker, Rio de Janeiro, Brasil.
Geografias corporais: dança, corpo e deficiência | Ana Gilbert e Paulo Kellerman
Revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação | Seção Criação
Biblioteca SciELO Brasil e SciELO Saúde Pública
Resumo:
O projeto Geografias Corporais resulta de uma parceria entre dança, fotografia e literatura, entre artistas do Brasil e de Portugal, entre academia e arte. São narrativas imagéticas e literárias em torno do diálogo entre múltiplas corporeidades, com o intuito de desestabilizar a ideia de corpo normal como universal. Surge do interesse em analisar como corpos normativos e não normativos experienciam a dança como forma de habitar suas geografias corporais e de definir seus contornos físicos, psíquicos e discursivos na relação entre movimento e imobilidade. O trabalho foi realizado com participantes do grupo Te Encontro Lá no Cacilda, em 2018, configurando uma pesquisa artística. As narrativas de corporeidade produzidas ao dançar foram captadas e traduzidas em fotografias, configurando textos visuais que, posteriormente, somados a conversas entre fotógrafa e escritor, serviram de base para a criação de textos ficcionais.
(Foto: Ana Gilbert)
“Entro na sala e sorrio. Digo: Oi. Depois digo: Tudo bem? E continuo a sorrir.
(Penso: Sorrir será a melhor forma de espera, de adiamento, de suspensão?)
Olha-me e sorri. Levanta-se, aproxima-se lentamente. Depois, abraça-me.
Sinto estranheza. Não é fácil receber o abraço de uma pessoa desconhecida. Não é fácil abraçar uma pessoa desconhecida. Mas correspondo.
Foi assim que nos conhecemos. Apenas mais tarde percebi que abraçar é uma forma de comunicar; como se o abraço fosse voz, e cada abraço tivesse uma tonalidade específica. Tal como cada palavra pode ser dita com um timbre diferente.
Não o ouvi falar. Mas conheço a sua voz.”
(Paulo Kellerman)
Relatos e ficções à volta de contextos de vulnerabilidade
“Alice Catarino, Beatriz Passão e Jorge Cardinali abrem-nos janelas para as suas vidas; Manuel Leiria, Nuno Henriques e Jacinto Duro desvelam-nos, com eles, outros recantos dessas casas; Bruno Gaspar, Lisa Teles e Maraia impregnam-nos a imaginação de cor e forma; Elsa Margarida Rodrigues, Mónia Camacho e Paulo Kellerman inundam-nos da luz dos sonhos; Ana Gilbert preenche-nos da matéria que liga as entranhas do espaço e do tempo.
Três cidadãos, três escritores, três ilustradores, três jornalistas e uma investigadora reunidos para dar corpo literário-artístico-jornalístico a uma ideia nascida no Núcleo Distrital de Leiria da EAPN Portugal e acolhida pelo Diário de Leiria, o Jornal de Leiria e o Região de Leiria.
No dia 15 de fevereiro, às 15h, no MiMo – Museu de Imagem e Movimento, em Leiria, vamos partilhar esta obra.”
Quem quiser aparecer, será bem-vindo!
Dança: Inesa Markava
Projeto em andamento com o grupo de pesquisa sobre movimento Te encontro lá no Cacilda / Pulsar Cia. de Dança | Teatro Cacilda Becker, Rio de Janeiro, Brasil.
Saber-se no corpo, ser o corpo, ser no corpo… o próprio e o do outro. Corpos humanos como materialidades diversas e criativas que se atualizam no dançar… corpos dançantes que interagem e se afetam mutuamente.
“Estende-me a mão. E diz: Não a agarres. Diz: Sente-a, apenas.
Aproximo a minha mão. As duas palmas tocam-se, e assim ficam: juntas.
Diz: Agarrar significa prender, não achas? Para sentir o outro basta tocar-lhe. Talvez tocar seja uma forma de agarrar com liberdade.
E sorri. Também sorrio. Enquanto as nossas mãos se tocam. Livres e sorridentes.”
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“Escuto o suave sussurro da respiração do meu corpo. Mas será que a minha alma também está a respirar? Como perceber se está viva, se não ouço nem sinto a sua respiração? Se não a sinto pulsar, se não sinto o bater do seu coração? Como saber o que faz respirar a alma?”
O Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência Assim Vivemos acontece bienalmente no Brasil desde 2003, e se configura como um espaço de produção de verdade sobre indivíduos com deficiência (dentre elas, a síndrome de Down). Pretende engajar a audiência em novas perspectivas sobre deficiência, problematizando a ideia de corpo normal como universal, por meio de filmes, atividades interativas, imagens e discursos institucionais. Ao se analisar as narrativas veiculadas nos filmes brasileiros sobre síndrome de Down (SD), apresentados em sete edições do festival, observou-se nos enredos a predominância de narrativas de superação, cujo foco é ultrapassar os obstáculos impostos pela deficiência. As narrativas de superação, também consideradas narrativas heroicas, surgem alinhadas ao modelo de entendimento da deficiência conhecido como modelo social. De cunho social e político, esse modelo surge a partir dos anos 1970 no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, com o intuito de questionar o modelo médico e seu discurso normalizador e intervencionista. A predominância desse tipo de narrativa desperta questionamentos sobre a dificuldade em se conviver com a diferença que cerca os corpos não-normativos e em admitir a variabilidade do humano. Argumenta-se que essa dificuldade aponta para um fenômeno psíquico coletivo que, sob o enfoque da Psicologia Analítica, pode ser denominado ‘complexo cultural’.
A noção de complexo cultural, desenvolvida a partir da teoria dos complexos de Carl G. Jung, busca entender como determinado fenômeno social se processa em grupos ou sociedades e a marca desse fenômeno na vida psíquica de seus membros. Em termos individuais, a ideia de complexo refere-se a um conjunto de representações em torno de um elemento comum, com determinada tonalidade afetiva e que se manifesta de forma repetitiva e autônoma. Em relação aos grupos sociais, o complexo cultural alude a representações coletivas, originadas historicamente a partir de experiências significativas de um grupo, as quais filtram as experiências dos indivíduos consigo próprios e com os outros. Ao se aplicar tal noção à questão da deficiência sob as lentes da superação, buscou-se explicitar aspectos da psique coletiva que, apesar do discurso vigente calcado em diferença e diversidade, reafirmam o arquétipo do herói apenas em seus aspectos luminosos de capacidade, atividade e expansão.
O enredo da superação valoriza a mente heroica, focada no enfrentamento dos problemas e no avançar confiante em si mesmo. As já citadas características de capacidade, atividade e expansão compõem justamente a base do modelo de normalidade que o festival deseja questionar. Entretanto, é preciso olhar não apenas a face luminosa do pensamento heroico, mas a sombra que toda luz carrega. Qual o outro lado da superação? Diante da perspectiva de avanço contínuo, positividade, velocidade e competitividade, implícitos ao pensamento heroico, aquilo que dele difere, e que sugere demora, retardo ou limite torna-se indesejável e desperta sentimentos de intolerância.
No âmbito coletivo, a ênfase exacerbada na superação reveste-se de uma intensa carga emocional que sinaliza a ativação de um complexo cultural, cujo núcleo aponta para um padrão arquetípico. Tal ênfase reverbera nos indivíduos e toca na dificuldade em se pensar o ser humano fora da moldura de razão e autonomia estabelecida pelo Iluminismo. A expressão disso é a tentativa simplista de minimizar, ou mesmo de eliminar, as marcas da SD que traduzem a instabilidade de uma identidade que escapa ao padrão vigente. Em certo sentido, busca criar uma imagem coesa do indivíduo que acomode os sentimentos de fragmentação e multiplicidade suscitados pela SD; em última instância, implica em uma diluição da diferença, do ser outro (apesar do discurso explícito de sua valorização). O ideal de conquistas aponta para a igualdade, para ser o mesmo, e se confunde com a inegável igualdade de direitos. Isso fica evidente nos filmes onde as pessoas com SD representadas aproximam-se do padrão de capacidade e autonomia considerado como desejável. As pessoas com SD de algum modo assimilam esse discurso e tentam, com algum esforço e sofrimento, corresponder à ideia que é construída sobre elas, em um movimento de reafirmação da inexistência de limites. A imposição dos limites trazidos pela deficiência permanece encoberta pelas sombras que cercam a vulnerabilidade e a mortalidade do herói. O sujeito racional autônomo (entendido como universal, ou seja, o mesmo) reafirma-se como único modelo possível, invalidando aqueles que dele diferem, considerados outros.
Em nome da desestigmatização e da inclusão de pessoas historicamente discriminadas, as narrativas criadas traduzem ambiguidade ao exaltar os aspectos de normalidade explicitamente questionados e transformá-los em metas a serem atingidas, levando, assim, a uma invisibilidade de necessidades especiais e até da própria materialidade da deficiência. A exacerbação da superação torna-se uma defesa maníaca contra a depressão, a qual é necessária para a vivência e a elaboração do luto e para o vislumbre de formas mais criativas de estar-no-mundo a partir das marcas e contornos da SD.
As fraturas se insinuam nos filmes, as palavras não ditas vazam nas entrelinhas dos discursos, as imagens inesperadamente se desdobram, esgarçando a uniformidade da superação e revelando múltiplas formas de viver com SD. Abafado pelo discurso desproporcionalmente luminoso da superação, surge o aspecto sombrio do herói, o qual aponta para a dificuldade em se lidar com a diferença cognitiva das pessoas com SD. Disto resulta o surgimento de dúvidas com relação ao processo inclusivo dessas pessoas, principalmente nas escolas, onde ainda impera o modelo competitivo baseado em acúmulo de conhecimento racional. Mais recentemente, nos dois filmes exibidos em 2015, uma discreta tendência dá mostras de que alguma mudança está a ser ensaiada. A redução da euforia da superação abre espaço para uma posição mais depressiva, com a constatação de certos limites intransponíveis e a reflexão sobre os rumos a serem tomados. Como encontrar novos modelos para essas pessoas que efetivamente traduzam a incorporação da variabilidade dos corpos humanos e o enfraquecimento da utopia do corpo normal universal? Ainda há mais perguntas que respostas. Contudo, é preciso ousar pronunciá-las, aceitar seus desafios e o desassossego que provocam para seguir adiante, em busca de uma outra forma de olhar e de entender o humano.
Porque “entender é um modo de olhar. Porque entender, aliás, é uma atitude.” (Clarice Lispector).
(Sinopse do trabalho apresentado no VIII Congresso Latinoamericano de Psicologia Analítica | Bogotá, Colômbia | Jul 2018)
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Singer T, Kimbles SL, editors. The cultural complex: contemporary Jungian perspectives on psyche and society. Hove and New York: Brunner-Routledge; 2004.
Jung CG. On psychic energy. Collected works, vol. VIII. London and NY: Routledge; 2015.
Hillman J. The virtues of caution. Resurgence [serial online] 2002; 213. http://www.resurgence.org/resurgence/issues/hillman213.htm (acessado em 17/Jul/2007).
Goodley D, Hughes B, Davis L, editors. Conclusion: disability and social theory. In: Disability and social theory: new developments and directions. New York: Palgrave Macmillan; 2012. p/ 308-316.
Gilbert ACB. Narrativas sobre síndrome de Down no Festival internacional de filmes sobre deficiência Assim Vivemos. Interface (Botucatu). 2017; 21(60):111-21.
Lispector C. Uma maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco; 1999. p. 228.
(foto: Ana Gilbert)
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“De repente, ele diz: importa-se de parar de olhar para mim?”
Sinto um súbito embaraço, vergonha misturada com surpresa, vontade de fugir; ou de reagir; mas limito-me a murmurar, em tom humilde: peço desculpa. E volto a cabeça ostensivamente.”
No conto de Paulo Kellerman, este breve e abrupto diálogo se estabelece entre dois homens num transporte público. Porém, a questão não se encerra com o pedido de desculpas. Ao diálogo externo, sucede-se um diálogo interno: num turbilhão de pensamentos, o segundo homem tenta acomodar dentro de si a agressividade recebida e o embaraço, o mal-estar, a indignação e o ódio visceral que, pouco a pouco, nele se produzem. E as fantasias. Alguns sinais vão dando a entender, até confirmar-se, que esse homem é cego. E, sendo cego, pensa que não deveria incomodar a ninguém com seu olhar; sendo cego, percebe-se encurralado e condenado ao seu mundo escuro e sem saída. Sendo cego, pensa que não há opção fora de si… nem fuga. Ao final do conto, a descoberta desconcertante: uma passageira senta-se ao seu lado e conta-lhe que o homem incomodado com o olhar de um cego, é, também ele, cego. “Não ver nem ser visto; ou seja: não existir”, pensa o homem. O que isso significa?
Espelhos sem luz.
O mundo contemporâneo é, predominantemente, visual, e a forma como o acessamos é modulada pelo olhar. O ato de olhar (algo, alguém, o mundo) envolve um certo grau de domínio e controle daquele que olha sobre o objeto do seu olhar; demarca posições com relação à diferença entre o eu e o outro. Olhar e sustentar o olhar, isto é, encarar, surge quando desejamos saber mais sobre algo e, especialmente, sobre alguém. Encarar vai além do olhar ordinário; existe uma tentativa de entender, de significar, algo que escapa ao conhecido, à ordem, à nomeação. A relação (ainda que passageira) que se estabelece entre aquele que encara e quem é encarado é de intenso envolvimento: há uma espécie de pergunta e uma solicitação de resposta; por vezes, uma forma de acusação e um pedido velado de desculpas. O olhar pode ser sustentado por ambos os lados; ou pode haver um desviar desse olhar diante do desconforto insuportável resultado da exposição. Encarar é algo que fazemos, ainda que sejamos socialmente regulados sobre isso: de um lado, é preciso dosar o olhar para não soar invasivo; de outro, é preciso proteger-se dessas invasões. Embaraço e angústia podem ser emoções suscitadas em ambas as partes. No entanto, encarar torna-se quase que inevitável quando nos deparamos com alguém que quebra uma certa ideia especular que temos em relação ao outro; quando esse outro nos expõe a sua diferença, seja no corpo, seja no comportamento, a qual não encontra equivalente em nós, desestabilizando, ou mesmo fraturando, as referências organizadas que temos do mundo; quando o estranho e o familiar apresentam-se juntos; quando fascinação e aversão são despertadas em nós por alguém. Em contrapartida, alguém que se sabe possuidor de algo que pode provocar o olhar insistente do outro quase que espera por esse olhar, e a ele responde, muitas vezes, com estratégias previamente elaboradas. Geografias específicas que determinam coreografias relacionais. Como o cego do conto que (pres)sente o olhar do outro e a ele responde defensivamente (sob a forma de ataque verbal), colocando-se no lugar de subordinação ao olhar dominador. Ao fazê-lo, coloca o outro homem nesse mesmo lugar de objeto do olhar do qual se ressente.
“Por que você é diferente de mim?”, “o que há de errado comigo?” são perguntas que existem em torno da cena do encarar e que demarcam formas de entendimento de nós mesmos, do grupo ao qual pertencemos e das relações que estabelecemos. Olhamos, estabelecemos contato visual, engajamos em olhar mútuo. Vemos. Não apenas com os olhos, mas com os outros sentidos, com o corpo como um todo, com a imaginação aguçada. Nesses movimentos, estão implícitas práticas sociais de dominação internalizadas.
A face é a principal área do corpo que concentra elementos identitários. Nela, buscamos os indícios de reconhecimento, rejeição e afetos (ou a sua ausência); no ato de encarar está em jogo nossa própria autoestima e vulnerabilidade perante o outro. Em caso de cegueira ou de baixa visão, há uma impossibilidade de reconhecimento desses indícios presentes na face do outro que falam de nós como se nos olhássemos num espelho, e também do que esse outro revela de si mesmo na relação conosco. Nesses casos, existe o olhar, mas não o ver. Contudo, a incapacidade de ver não decorre apenas da falta de visão física. Certas formas de olhar e de sustentar esse olhar denunciam a dificuldade em ver certas pessoas e suas circunstâncias. Certas formas de olhar são incapazes de ver efetivamente o outro, especialmente, quando envolvem sofrimento humano ou mesmo uma deficiência. Elas apenas estabelecem uma relação de identificação onde o que percebemos é aquilo que não queremos ser ou não queremos que nos aconteça. Demarcamos, assim, uma distância “segura”. Tais pessoas permanecem invisíveis para nós, invisíveis em sua existência diferente, incômoda, ameaçadora. E nós, resguardados em nossa bolha de normalidade, também deixamos de nos ver no outro; tornamo-nos invisíveis para nós mesmos. Espelhos sem luz.
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Kellerman P. Importa-se de parar de olhar para mim? In: Gastar palavras. Porto: Deriva Editores; 2006.
Garland-Thomson R. Staring: how we look. Oxford: Oxford University Press; 2009.
Sturken M, Cartwright L. Practices of looking: na introduction to visual culture. New York/Oxford: Oxford University Press; 2009.
Elkins J, editor. Visual literacy. New York, London: Routledge; 2009.
Reis Filho OG. Reconfigurações do olhar: o háptico na cultura visual contemporânea. Visualidades 2012; 10 (2): 75-89.
(foto: Ana Gilbert)
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Como estabelecer a agonia ou a morte da alma, condição presente nos atos suicidas? Como diferenciar a necessidade da ‘experiência psíquica’ da experiência ‘literal’ de morte?
Suicídio. O único ato possível em dado momento, o único capaz de provocar mudança, de permitir o deslocamento, o destacar-se da dor. A dor que substitui a dor maior, insuportável, de existir. A impossibilidade de narrar o sofrimento, de narrar o inenarrável. A incapacidade de ser escutado por alguém.
Suicídio. Em certo momento, resultado da intoxicação por um potente veneno: o vazio, a perda da alma, a desconexão com o que se é para além do trabalho ou das relações sociais; resultado da fixação na impossibilidade de ser, do emudecimento que anuncia a morte em vida. Narrativa, o antídoto possível. A narração (não necessariamente verbal), fio que resiste e se prende à vida, aponta para vínculos potenciais, para a linguagem poética capaz de expressar a dor, mas que nem sempre é suficiente.
Falar de suicídio é romper com a ideia (ilusória) de que o falar induz a ele. Silenciar, sim, é alimentar o tabu; é aumentar a incomunicabilidade do sofrimento; é desconsiderar as relações entre indivíduo, sociedade e cultura e a permanência daquele que se suicida nos discursos e na vida dos que ficam; é deixar patente o quanto nós, como interlocutores, não suportamos ouvir o que é indizível para o outro. E diante do desconforto e da impotência, podemos escorregar para atitudes de prevenção ou de intelectualização que nos tire desse lugar de contato sensível com a morte, calando vozes em nome de um ‘eu’ consciente que, acreditamos, deveria ser salvo. Apelamos para a informação como se ela fosse capaz de suprir a lacuna da narração e perdemos a oportunidade de lidar com a morte como experiência psíquica, desafiando a literalidade do ato, e de perguntar ‘o que (quais aspectos, quem em mim) deve morrer?’.
O impulso em direção à transformação pode ser expresso por várias imagens. A morte é uma delas, talvez a mais potente, talvez a mais literal, talvez a que produz as mais intensas emoções, a que provoca mudanças diante de uma vida já ‘sem alma’, ainda que elas ocorram às custas do fim daquilo que o indivíduo chama de ‘eu’.
Como falar de suicídio, diante dos afetos que mobiliza? Como estabelecer um diálogo com alguém que manifesta ideias suicidas (ou que já fez uma ou algumas tentativas)? Somos íntimos de nossas ideias e experiências de morte para suportar dizer (e ouvir) aquilo que não pode ser dito, sequer pensado? Seremos capazes de entender aquilo que é externo a nós e que acontece ao outro?
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“A alma é a parte viva do ser humano, aquilo que vive de si mesmo e que causa vida”. (C.G. Jung)
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Hillman J. Suicide and the soul. Connecticut: Spring Publications, 1997.
Jung CG. Collected works, 9/1, §56.
Moretto MLT, Svartman BP, Freller CC, Massola GM, Crochik JL, Silva PF. O suicídio e a morte do narrador. Psicologia USP. 2017; 28(2):159-164.
Peixoto JL. Antídoto. Lisboa: Temas e Debates, 2003.
Pieri PF. Introdução a Carl Gustav Jung. Lisboa: Edições 70, 2005.
(foto: Ana Gilbert)
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A expressão ‘outros inapropriados‘ foi tomada por empréstimo à cineasta Trinh Minh-ha por Donna Haraway para se referir àqueles que são considerados como ‘outros‘, diferentes de um padrão reconhecido como tal, ou diferentes daquilo que é considerado como ‘mesmo‘.
No inglês, a expressão inappropriate/d others cria um jogo de palavras que, se por um lado, define aqueles considerados como inapropriados ou inadequados, por outro, permite que, justamente por não corresponderem ao padrão vigente disseminado em narrativas dominantes, possam escapar a uma apropriação objetificante validada por essas narrativas. Ser um ‘outro inapropriado‘ significa, para Trinh e Haraway, relacionar-se com a diferença fora do eixo dominação-submissão. Significa produzir imagens da diferença que não sejam meras reproduções, ou reflexos, do ‘mesmo‘, mas novos e múltiplos padrões que não remetem a, nem reafirmam, um único modelo. Os ‘outros inapropriados’, aos quais Haraway se refere em suas discussões, são aqueles que diferem do padrão de homem branco, civilizado, ocidental, compulsoriamente heterossexual e, poderíamos acrescentar, capaz e produtivo.
A mulher foi, historicamente, associada à natureza e, em decorrência, a uma corporeidade biológica descontrolada, enquanto o homem estaria mais vinculado à cultura, isto é, a todo produto da consciência e da ação humana, sendo o responsável por dominar e controlar a natureza, e, portanto, a mulher. No século XIX, a busca pela estabilidade e pela simplificação dos papéis no âmbito da família nuclear determinou para a mulher a função de responsável pela harmonia do lar, à custa de acalmar e controlar seus impulsos, principalmente, os de natureza sexual. Como resultado, sintomas físicos diversos passaram a ser a única forma de expressão da mulher, dando origem às manifestações nomeadas como histéricas, e validando a sua medicalização como forma de controle de sua natureza instável. De acordo com essa perspectiva, a mulher não seria capaz de falar por si mesma, tornando-se objeto do discurso do outro.
O conceito de gênero, marcador social de diferença assim como raça e classe, é construído de forma relacional e não é determinado pelo sexo, apesar de certamente depender dele. Ele foi desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual, que estabelece hierarquia e antagonismo entre homens e mulheres, a naturalização da reprodução para a mulher e também a sua medicalização, como forma de dominação e controle, principalmente da sexualidade feminina.
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Pessoas com algum tipo de deficiência, que de alguma forma se apresentam com corpos não-normativos, também já foram consideradas incapazes de falar por si mesmas, consistindo em mero objeto do discurso do outro, e como tal, necessitando da intermediação de alguém que falasse delas (e por elas). O movimento social que surgiu nos anos 1970, buscou uma nova forma de entendimento das pessoas com deficiência, fora do modelo médico, e novos modelos relacionais mais adequados a uma realidade, até então, pouco enfocada.
No processo de tornar visível a variação apresentada pelos corpos não-normativos (atípicos), a tendência foi a de se afastar da noção de deficiência como falha ou fracasso, passível de intervenção médica, para entendê-la como produto de uma construção social. Entretanto, a abstração dessa construção acabou por reforçar o corpo normal como universal e único modelo possível, tornando a deficiência invisível em sua materialidade. A tendência, hoje, é reconhecer as marcas somáticas da diferença presente nos corpos humanos sem, contudo, deixar de lado a base social/cultural do preconceito e da desigualdade. É a partir da materialidade da diferença que se pode construir um estar-no-mundo mais criativo que abarque a variabilidade dos corpos humanos.
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Haraway D. The promise of monsters: a regenerative politics for inappropriate/d others. In: Grossberg L, Nelson C, Treichler PA, eds. Cultural Studies. New York: Rutledge, 1992. p. 295-337.
Haraway D. Primate visions. Gender, race, and nature in the world of modern science. New York: Routledge; 1989.
Kehl MR. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. São Paulo: Boitempo, 2016.
Gilbert ACB. Narrativas sobre síndrome de Down no Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência Assim Vivemos. Interface (Botucatu). 2017; 21(60):111-21.
(foto: Ana Gilbert)
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Quando Itaro, personagem do livro homens imprudentemente poéticos de Valter Hugo Mãe, ascende do poço abraçado ao animal, monstruoso e terrível, que tivera por companhia na solitária meditação a que se submetera, durante sete sóis e sete luas, por determinação do monge imaterial, vinha certo de que haviam se tornado amigos. O que antes se insinuava como uma presença inimiga e aterradora, desconhecida em força e identidade, ainda que familiar em bafo, pelos, dentes e ferocidade, revelava-se, na subida, como companheiro submisso e cordial. Ao chegar, exausto e quase alegre por se terem salvado os dois, espanta-se ao constatar que trazia ninguém. Alguém diria que era o seu próprio medo, ao qual se tinha afeiçoado…
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Sigmund Freud, em artigo de 1919, discute os múltiplos aspectos do tema do ‘estranho’, e os diferentes significados a ele relacionados, por meio de uma análise do uso linguístico da palavra alemã heimlich. Em um primeiro sentido, segundo ele, o termo se refere àquilo que é doméstico, familiar, confortável, aconchegante, íntimo. Contudo, um segundo sentido aponta para o que é escondido e oculto, para aquilo que não deve ser mostrado, para o que é obscuro e secreto. Assim, percebe-se que, nesse segundo sentido, heimlich se aproxima de seu oposto, unheimlich, configurando-se como expressão ambivalente e que passa a compor a definição de ‘estranho’ à qual Freud se refere no início do texto: “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar.” (p. 277). Pode-se dizer, então, que a estranheza está ligada, não a uma propriedade de um determinado objeto, mas ao nosso olhar e à nossa relação com o dito objeto, relação essa que beira a esfera da ameaça ou do risco.
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Em seu livro, os anormais, Michel Foucault discute um tipo de poder que surge no século XVIII, a que ele chama de ‘poder de normalização’, que não mais se assenta sobre o princípio da exclusão, da rejeição, do banimento (como no caso dos leprosos, no fim da Idade Média), mas sobre o princípio da inclusão, por meio da qual esse poder, de caráter positivo, torna-se observador, formador de um saber, ligado a técnicas de intervenção e transformação sobre aquilo que é considerado como desvio. Foucault faz uma genealogia do que é considerado, no século XIX, como indivíduo anormal, e destaca o ‘monstro’ como um dos seus elementos constituintes. A ideia de ‘monstro’, ressalta o autor, refere-se a uma violação das leis, seja da sociedade, seja da natureza, e sua capacidade de provocar inquietação gera sentimentos de violência, de pena, de atenção médica, ou a necessidade de supressão.
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Identidades predatórias é o termo usado por Arjun Appadurai para se referir às identidades que se constituem e se fortalecem, forçosamente, pelo aniquilamento de outras categorias sociais, as quais são entendidas como ameaçadoras a determinado grupo, quase sempre majoritário, que se intitula nós. A separação nós/eles remete a uma questão básica em sociologia que abrange o estabelecimento de fronteiras bem definidas de um nós que se contrapõe ao que dele difere. Relacionadas a essa questão, as ideias de maioria e minoria são produtos mais recentes na história da humanidade, que surgem associadas às noções de nação, contagem, classificação e representação política das populações. As minorias, apesar de sua ‘fraqueza’ em termos políticos (ou até mesmo militares), curiosamente, despertam a ira e o medo da chamada maioria. Identidades majoritárias podem estar associadas a questões culturais e identidades nacionais, a questões religiosas ou a questões raciais. Ideias de ‘pureza’ e de ‘completude’ também cercam o par maioria/minoria, provocando ansiedade no grupo que se percebe como maioria, isto é, que se percebe como não constituindo um todo absoluto, e gerando com isso a necessidade de ‘purificação’. Segundo Appadurai, esta seria uma das causas da ira que a minoria desperta, pois esses ‘pequenos números’ representam aquilo que impede a maioria de se tornar totalidade. Esse tipo de minoria não se define apenas como uma minoria em termos de opinião, ou seja, uma minoria que se configura como tal por exercer o direito ao dissenso, o direito à liberdade de opinião e de discurso, mas uma minoria em termos sociais e culturais e, portanto, uma minoria permanente.
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O outro, isto é, aquele que difere do eu, e com o qual devemos estabelecer uma relação de diálogo, pode assumir facetas inquietantes e mesmo desorganizadoras, como se pode ver nos diferentes autores citados acima. Essas facetas dizem respeito ao olhar que lançamos sobre aquele que se configura como outro, e que elucida mais sobre nós mesmos do que sobre o sujeito, objeto desse olhar. O outro se revela tanto interno, ou seja, aquele que nos habita e que desconhecemos, quanto externo. Contudo, o elemento comum que perpassa essas várias facetas do outro é a dificuldade que temos de estabelecer uma relação de genuína abertura à alteridade. O outro demarca um território ao qual não temos total acesso, o que nos faz lançar mãos de rótulos, ou categorias, que sirvam de mediadores dessa relação, em certo sentido, ameaçadora. O outro é aquele com o qual nos identificamos, mas ao mesmo tempo, de quem devemos nos diferenciar para que não seja apenas nosso espelho. A diferenciação é o que torna possível a relação de diálogo; permite o reconhecimento de certos aspectos colocados no outro que, na verdade, nos pertencem, mas, principalmente, nos abrem ao desconhecido que é o outro e ao desconhecido que esse outro vê em nós, despertando-nos para experiências que participam da constituição do que somos.
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Hugo Mãe V. Homens imprudentemente poéticos. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
Freud S. O ‘estranho’. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976. p. 271-318, v.XVII.
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