(foto: Ana Gilbert)
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Quando Itaro, personagem do livro homens imprudentemente poéticos de Valter Hugo Mãe, ascende do poço abraçado ao animal, monstruoso e terrível, que tivera por companhia na solitária meditação a que se submetera, durante sete sóis e sete luas, por determinação do monge imaterial, vinha certo de que haviam se tornado amigos. O que antes se insinuava como uma presença inimiga e aterradora, desconhecida em força e identidade, ainda que familiar em bafo, pelos, dentes e ferocidade, revelava-se, na subida, como companheiro submisso e cordial. Ao chegar, exausto e quase alegre por se terem salvado os dois, espanta-se ao constatar que trazia ninguém. Alguém diria que era o seu próprio medo, ao qual se tinha afeiçoado…
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Sigmund Freud, em artigo de 1919, discute os múltiplos aspectos do tema do ‘estranho’, e os diferentes significados a ele relacionados, por meio de uma análise do uso linguístico da palavra alemã heimlich. Em um primeiro sentido, segundo ele, o termo se refere àquilo que é doméstico, familiar, confortável, aconchegante, íntimo. Contudo, um segundo sentido aponta para o que é escondido e oculto, para aquilo que não deve ser mostrado, para o que é obscuro e secreto. Assim, percebe-se que, nesse segundo sentido, heimlich se aproxima de seu oposto, unheimlich, configurando-se como expressão ambivalente e que passa a compor a definição de ‘estranho’ à qual Freud se refere no início do texto: “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar.” (p. 277). Pode-se dizer, então, que a estranheza está ligada, não a uma propriedade de um determinado objeto, mas ao nosso olhar e à nossa relação com o dito objeto, relação essa que beira a esfera da ameaça ou do risco.
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Em seu livro, os anormais, Michel Foucault discute um tipo de poder que surge no século XVIII, a que ele chama de ‘poder de normalização’, que não mais se assenta sobre o princípio da exclusão, da rejeição, do banimento (como no caso dos leprosos, no fim da Idade Média), mas sobre o princípio da inclusão, por meio da qual esse poder, de caráter positivo, torna-se observador, formador de um saber, ligado a técnicas de intervenção e transformação sobre aquilo que é considerado como desvio. Foucault faz uma genealogia do que é considerado, no século XIX, como indivíduo anormal, e destaca o ‘monstro’ como um dos seus elementos constituintes. A ideia de ‘monstro’, ressalta o autor, refere-se a uma violação das leis, seja da sociedade, seja da natureza, e sua capacidade de provocar inquietação gera sentimentos de violência, de pena, de atenção médica, ou a necessidade de supressão.
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Identidades predatórias é o termo usado por Arjun Appadurai para se referir às identidades que se constituem e se fortalecem, forçosamente, pelo aniquilamento de outras categorias sociais, as quais são entendidas como ameaçadoras a determinado grupo, quase sempre majoritário, que se intitula nós. A separação nós/eles remete a uma questão básica em sociologia que abrange o estabelecimento de fronteiras bem definidas de um nós que se contrapõe ao que dele difere. Relacionadas a essa questão, as ideias de maioria e minoria são produtos mais recentes na história da humanidade, que surgem associadas às noções de nação, contagem, classificação e representação política das populações. As minorias, apesar de sua ‘fraqueza’ em termos políticos (ou até mesmo militares), curiosamente, despertam a ira e o medo da chamada maioria. Identidades majoritárias podem estar associadas a questões culturais e identidades nacionais, a questões religiosas ou a questões raciais. Ideias de ‘pureza’ e de ‘completude’ também cercam o par maioria/minoria, provocando ansiedade no grupo que se percebe como maioria, isto é, que se percebe como não constituindo um todo absoluto, e gerando com isso a necessidade de ‘purificação’. Segundo Appadurai, esta seria uma das causas da ira que a minoria desperta, pois esses ‘pequenos números’ representam aquilo que impede a maioria de se tornar totalidade. Esse tipo de minoria não se define apenas como uma minoria em termos de opinião, ou seja, uma minoria que se configura como tal por exercer o direito ao dissenso, o direito à liberdade de opinião e de discurso, mas uma minoria em termos sociais e culturais e, portanto, uma minoria permanente.
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O outro, isto é, aquele que difere do eu, e com o qual devemos estabelecer uma relação de diálogo, pode assumir facetas inquietantes e mesmo desorganizadoras, como se pode ver nos diferentes autores citados acima. Essas facetas dizem respeito ao olhar que lançamos sobre aquele que se configura como outro, e que elucida mais sobre nós mesmos do que sobre o sujeito, objeto desse olhar. O outro se revela tanto interno, ou seja, aquele que nos habita e que desconhecemos, quanto externo. Contudo, o elemento comum que perpassa essas várias facetas do outro é a dificuldade que temos de estabelecer uma relação de genuína abertura à alteridade. O outro demarca um território ao qual não temos total acesso, o que nos faz lançar mãos de rótulos, ou categorias, que sirvam de mediadores dessa relação, em certo sentido, ameaçadora. O outro é aquele com o qual nos identificamos, mas ao mesmo tempo, de quem devemos nos diferenciar para que não seja apenas nosso espelho. A diferenciação é o que torna possível a relação de diálogo; permite o reconhecimento de certos aspectos colocados no outro que, na verdade, nos pertencem, mas, principalmente, nos abrem ao desconhecido que é o outro e ao desconhecido que esse outro vê em nós, despertando-nos para experiências que participam da constituição do que somos.
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Hugo Mãe V. Homens imprudentemente poéticos. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
Freud S. O ‘estranho’. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976. p. 271-318, v.XVII.
Amaral LA. Corpo desviante / olhar perplexo. Psicologia USP, São Paulo, 5(1/2), p.245-268, 1994.
Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. (Coleção Obras de Michel Foucault)
Appadurai A. Fear of small numbers. An essay on the geography of anger. Durham and London: Duke University Press, 2006.
Bernardi C. Amizade individuante, exotopia e hospitalidade: encontros e individuação. 2012. (Apresentação de Trabalho/Congresso).