(foto: Ana Gilbert)
…
Como estabelecer a agonia ou a morte da alma, condição presente nos atos suicidas? Como diferenciar a necessidade da ‘experiência psíquica’ da experiência ‘literal’ de morte?
Suicídio. O único ato possível em dado momento, o único capaz de provocar mudança, de permitir o deslocamento, o destacar-se da dor. A dor que substitui a dor maior, insuportável, de existir. A impossibilidade de narrar o sofrimento, de narrar o inenarrável. A incapacidade de ser escutado por alguém.
Suicídio. Em certo momento, resultado da intoxicação por um potente veneno: o vazio, a perda da alma, a desconexão com o que se é para além do trabalho ou das relações sociais; resultado da fixação na impossibilidade de ser, do emudecimento que anuncia a morte em vida. Narrativa, o antídoto possível. A narração (não necessariamente verbal), fio que resiste e se prende à vida, aponta para vínculos potenciais, para a linguagem poética capaz de expressar a dor, mas que nem sempre é suficiente.
Falar de suicídio é romper com a ideia (ilusória) de que o falar induz a ele. Silenciar, sim, é alimentar o tabu; é aumentar a incomunicabilidade do sofrimento; é desconsiderar as relações entre indivíduo, sociedade e cultura e a permanência daquele que se suicida nos discursos e na vida dos que ficam; é deixar patente o quanto nós, como interlocutores, não suportamos ouvir o que é indizível para o outro. E diante do desconforto e da impotência, podemos escorregar para atitudes de prevenção ou de intelectualização que nos tire desse lugar de contato sensível com a morte, calando vozes em nome de um ‘eu’ consciente que, acreditamos, deveria ser salvo. Apelamos para a informação como se ela fosse capaz de suprir a lacuna da narração e perdemos a oportunidade de lidar com a morte como experiência psíquica, desafiando a literalidade do ato, e de perguntar ‘o que (quais aspectos, quem em mim) deve morrer?’.
O impulso em direção à transformação pode ser expresso por várias imagens. A morte é uma delas, talvez a mais potente, talvez a mais literal, talvez a que produz as mais intensas emoções, a que provoca mudanças diante de uma vida já ‘sem alma’, ainda que elas ocorram às custas do fim daquilo que o indivíduo chama de ‘eu’.
Como falar de suicídio, diante dos afetos que mobiliza? Como estabelecer um diálogo com alguém que manifesta ideias suicidas (ou que já fez uma ou algumas tentativas)? Somos íntimos de nossas ideias e experiências de morte para suportar dizer (e ouvir) aquilo que não pode ser dito, sequer pensado? Seremos capazes de entender aquilo que é externo a nós e que acontece ao outro?
…
“A alma é a parte viva do ser humano, aquilo que vive de si mesmo e que causa vida”. (C.G. Jung)
…
Hillman J. Suicide and the soul. Connecticut: Spring Publications, 1997.
Jung CG. Collected works, 9/1, §56.
Moretto MLT, Svartman BP, Freller CC, Massola GM, Crochik JL, Silva PF. O suicídio e a morte do narrador. Psicologia USP. 2017; 28(2):159-164.
Peixoto JL. Antídoto. Lisboa: Temas e Debates, 2003.
Pieri PF. Introdução a Carl Gustav Jung. Lisboa: Edições 70, 2005.