Espelhos sem luz

Cegueira

(foto: Ana Gilbert)

“De repente, ele diz: importa-se de parar de olhar para mim?”
Sinto um súbito embaraço, vergonha misturada com surpresa, vontade de fugir; ou de reagir; mas limito-me a murmurar, em tom humilde: peço desculpa. E volto a cabeça ostensivamente.”

No conto de Paulo Kellerman, este breve e abrupto diálogo se estabelece entre dois homens num transporte público. Porém, a questão não se encerra com o pedido de desculpas. Ao diálogo externo, sucede-se um diálogo interno: num turbilhão de pensamentos, o segundo homem tenta acomodar dentro de si a agressividade recebida e o embaraço, o mal-estar, a indignação e o ódio visceral que, pouco a pouco, nele se produzem.  E as fantasias. Alguns sinais vão dando a entender, até confirmar-se, que esse homem é cego. E, sendo cego, pensa que não deveria incomodar a ninguém com seu olhar; sendo cego, percebe-se encurralado e condenado ao seu mundo escuro e sem saída. Sendo cego, pensa que não há opção fora de si… nem fuga.  Ao final do conto, a descoberta desconcertante: uma passageira senta-se ao seu lado e conta-lhe que o homem incomodado com o olhar de um cego, é, também ele, cego. “Não ver nem ser visto; ou seja: não existir, pensa o homem.  O que isso significa?

Espelhos sem luz.

O mundo contemporâneo é, predominantemente, visual, e a forma como o acessamos é modulada pelo olhar. O ato de olhar (algo, alguém, o mundo) envolve um certo grau de domínio e controle daquele que olha sobre o objeto do seu olhar; demarca posições com relação à diferença entre o eu e o outro. Olhar e sustentar o olhar, isto é, encarar, surge quando desejamos saber mais sobre algo e, especialmente, sobre alguém. Encarar vai além do olhar ordinário; existe uma tentativa de entender, de significar, algo que escapa ao conhecido, à ordem, à nomeação. A relação (ainda que passageira) que se estabelece entre aquele que encara e quem é encarado é de intenso envolvimento: há uma espécie de pergunta e uma solicitação de resposta; por vezes, uma forma de acusação e um pedido velado de desculpas. O olhar pode ser sustentado por ambos os lados; ou pode haver um desviar desse olhar diante do desconforto insuportável resultado da exposição. Encarar é algo que fazemos, ainda que sejamos socialmente regulados sobre isso: de um lado, é preciso dosar o olhar para não soar invasivo; de outro, é preciso proteger-se dessas invasões. Embaraço e angústia podem ser emoções suscitadas em ambas as partes. No entanto, encarar torna-se quase que inevitável quando nos deparamos com alguém que quebra uma certa ideia especular que temos em relação ao outro; quando esse outro nos expõe a sua diferença, seja no corpo, seja no comportamento,  a qual não encontra equivalente em nós, desestabilizando, ou mesmo fraturando, as referências organizadas que temos do mundo; quando o estranho e o familiar apresentam-se juntos; quando fascinação e aversão são despertadas em nós por alguém. Em contrapartida, alguém que se sabe possuidor de algo que pode provocar o olhar insistente do outro quase que espera por esse olhar, e a ele responde, muitas vezes, com estratégias previamente elaboradas. Geografias específicas que determinam coreografias relacionais. Como o cego do conto que (pres)sente o olhar do outro e a ele responde defensivamente (sob a forma de ataque verbal), colocando-se no lugar de subordinação ao olhar dominador. Ao fazê-lo, coloca o outro homem nesse mesmo lugar de objeto do olhar do qual se ressente.

“Por que você é diferente de mim?”, “o que há de errado comigo?” são perguntas que existem em torno da cena do encarar e que demarcam formas de entendimento de nós mesmos, do grupo ao qual pertencemos e das relações que estabelecemos. Olhamos, estabelecemos contato visual, engajamos em olhar mútuo. Vemos. Não apenas com os olhos, mas com os outros sentidos, com o corpo como um todo, com a imaginação aguçada. Nesses movimentos, estão implícitas práticas sociais de dominação internalizadas.
A face é a principal área do corpo que concentra elementos identitários. Nela, buscamos os indícios de reconhecimento, rejeição e afetos (ou a sua ausência); no ato de encarar está em jogo nossa própria autoestima e vulnerabilidade perante o outro. Em caso de cegueira ou de baixa visão, há uma impossibilidade de reconhecimento desses indícios presentes na face do outro que falam de nós como se nos olhássemos num espelho, e também do que esse outro revela de si mesmo na relação conosco. Nesses casos, existe o olhar, mas não o ver. Contudo, a incapacidade de ver não decorre apenas da falta de visão física. Certas formas de olhar e de sustentar esse olhar denunciam a dificuldade em ver certas pessoas e suas circunstâncias. Certas formas de olhar são incapazes de ver efetivamente o outro, especialmente, quando envolvem sofrimento humano ou mesmo uma deficiência. Elas apenas estabelecem uma relação de identificação onde o que percebemos é aquilo que não queremos ser ou não queremos que nos aconteça. Demarcamos, assim, uma distância “segura”. Tais pessoas permanecem invisíveis para nós, invisíveis em sua existência diferente, incômoda, ameaçadora. E nós, resguardados em nossa bolha de normalidade, também deixamos de nos ver no outro; tornamo-nos invisíveis para nós mesmos. Espelhos sem luz.

Kellerman P. Importa-se de parar de olhar para mim? In: Gastar palavras. Porto: Deriva Editores; 2006.
 
Garland-Thomson R. Staring: how we look. Oxford: Oxford University Press; 2009.
 
Sturken M, Cartwright L. Practices of looking: na introduction to visual culture. New York/Oxford: Oxford University Press; 2009.
 
Elkins J, editor. Visual literacy. New York, London: Routledge; 2009.
 
Reis Filho OG. Reconfigurações do olhar: o háptico na cultura visual contemporânea. Visualidades 2012; 10 (2): 75-89.

 

 

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