Apresentação

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Seres humanos são feitos de palavras, nos diz o escritor José Saramago; são narrativas construídas no viver diário que no decorrer de sua finita existência recebem e transmitem um infinito legado de palavras. Ricardo Reis, heterônimo do escritor Fernando Pessoa, em uma de suas odes, presenteia-nos com uma frase que, de forma concisa e poética, resume nossa condição: “somos contos contando contos, nada” . Saramago, posteriormente, faz-lhe um pequeno acréscimo que, se por um lado acentua ainda mais a pequenez e a transitoriedade do ser humano às quais se refere Reis, por outro, aponta para aquilo que se revela como grandiosidade e permanência: “somos contos de contos contando contos, nada”. Como “contos ambulantes, contos feitos de contos”, continua Saramago, “vamos pelo mundo contando o conto que somos e os contos que aprendemos”. Este movimento traz implícita a presença (real ou virtual) de um ‘outro’ ao qual nos dirigimos ao narrar e que, ao escutar, participa da constituição do nosso ‘eu’. Dito de outra forma, narrar para o outro é também um narrar para nós mesmos, delineando contornos e imagens do que somos.

Se é certo que somos feitos de palavras, também somos feitos de imagens. Em um sentido mais amplo, somos feitos de imagens que constituem a própria psique, os fundamentos que possibilitam os movimentos da psicodinâmica. E em um sentido particular, somos feitos das  imagens de caráter representacional e das imagens que resultam da tessitura das palavras (escritas ou faladas), cujos elementos sensoriais, emocionais e imaginativos estão presentes nos gestos, nos discursos e na memória e vão além de uma mera descrição literal de algo.

A apreensão, o entendimento e a interpretação do significado de uma imagem só é possível se levarmos em consideração tanto um repertório interno individual, do qual essa e outras imagens são apenas uma ponta aparente, quanto um repertório externo, coletivo, circunstancial, que se refere não a este ou àquele indivíduo específico, mas ao repertório indireto de imagens que é constituído e atualizado culturalmente. Mulheres e homens que participam de uma mesma sociedade compartilham representações comuns, as quais servem para marcar o seu pertencimento a ela. Nesse processo, são reproduzidos, muitas vezes de forma subliminar, valores, crenças, estereótipos e padrões de normalidade, corpo e beleza que permeiam um determinado contexto sócio-político-religioso-cultural e que orientam as formas de olhar o mundo e a produção de subjetividades.

A literatura é uma produção humana e, como tal, é expressão desses olhares possíveis e das relações que estabelecemos com o mundo que nos rodeia. Os textos literários são capazes de despertar imagens; as palavras reunidas adquirem forma e permitem que tais textos possam ser ‘vistos’, seja de um modo mais estruturado, como cenas, seja menos estruturado, como cores, traços, formas e humores. Com uma linguagem essencialmente conotativa, eles têm a capacidade de provocar em nós uma infinidade de sensações e emoções para além de uma apreciação puramente intelectual; desta forma, são capazes de desestabilizar certezas e ativar outras formas de compreensão.

Este trabalho, que tem como foco contos e poemas contemporâneos, alimenta-se de fontes diversas, como as tradições das histórias sufis e dos contos de fadas. Alinha-se com formas de compreensão das imagens oriundas da Psicologia Analítica de Carl G. Jung e da Psicologia Arquetípica de James Hillman que valorizam não apenas o que é visto, mas o modo como é visto. Pretende acessar o inesgotável ‘baú das palavras’ que nutre a nossa existência; e, sobretudo, leva em consideração o espaço/tempo da cultura em que vivemos, em seus aspectos relacionais dinâmicos e plurais, instigando o exercício constante de reflexão sobre o modo como percebemos o mundo e a nós mesmos por meio de lentes e filtros específicos e contingentes.

Em edições passadas, Conto & Poesia já abordou os seguintes temas: gênero, relação profissional de saúde-paciente, morte, entre outros. Atualmente, aborda-se o tema  ‘diferença e diversidade’ e o imbricamento eu-outro, resumido na pergunta ‘quem é o outro?’.

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